Peritos confirmam denúncias de tortura em presídio de Alcaçuz, no Rio Grande do Norte
O Ministério dos Direitos Humanos recebeu às 17h de quarta-feira (1º)
o relatório anual do Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura
(MNPCT), órgão vinculado ao Executivo federal mas de atuação
independente. No Rio Grande do Norte, as investigações comprovaram as denúncias feitas à revista ÉPOCA pela professora Juliana Melo, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em março deste ano.
Após a publicação de seu relato, a antropóloga conta que foi perseguida e taxada de mentirosa. O secretário de Estado da Justiça e Cidadania do Rio Grande do Norte, Luís Mauro Araújo, foi a público negar as acusações da professora e chamá-la de "irresponsável". Cinco meses depois, o documento entregue nesta quarta comprova que ela estava falando a verdade. Segundo o documento, presos estão mantidos em condições que “configuram tratamento cruel, desumano e degradante”. “A tortura é prática enraizada e naturalizada no país, sobretudo quando dirigida contra corpos negros”, afirmam os membros do mecanismo, no texto de 166 páginas.
"Sempre falei a verdade. Eu sei disso e eles sabem disso. Esse relatório vem para confirmar. O que vejo aqui é uma tentativa de silenciamento", afirma a professora, após a divulgação do relatório. Desde a publicação de suas denúncias, ela relata estar impedida de entrar no presídio e conta que um juiz chegou a indicar-lhe que desistisse de tentar entrar lá para "não cair em uma pegadinha".
Os peritos do mecanismo denunciaram que, da mesma forma, órgãos de fiscalização externa não conseguiam autorização para entrar na unidade, nem mesmo o Conselho Estadual de Direitos Humanos, que possui prerrogativa legal de ingresso em todas as unidades do sistema prisional do estado. E que isso é um indício de violações: “Um local de privação de liberdade que não recebe nenhuma visita externa, vistoria e não tem procedimentos e rotinas estabelecidas de forma transparente é um ambiente em que pode haver tortura, crime que dificilmente será identificado ou responsabilizado”.
O relatório anual discorre sobre fiscalizações em presídios, unidades de internação de adolescentes infratores, hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas de quatro estados: Mato Grosso, Roraima, Rio Grande do Norte e Tocantins. O MNPCT ainda vai lançar mais um relatório com informações mais específicas sobre Alcaçuz, previsto para setembro.
Falta higiene e sobram doenças
Tal e qual Juliana Melo havia descrito, o relatório confirma que a água para higiene é ligada por meia hora, três vezes ao dia, e que o acesso a produtos de higiene pessoal está comprometido:“A higiene, sem quaisquer produtos, é ainda mais prejudicada diante das condições de racionamento de água, que é fornecida três vezes ao dia, em média por um período de 30 minutos a cada vez, totalizando 90 minutos de água por dia. Os detentos precisam fazer revezamento para utilizar a torneira de outras celas, bem como para utilização dos banheiros, o que é bastante prejudicado pelo racionamento, tornando o lugar ainda mais insalubre. (...) Trata-se de uma água não tratada para consumo humano, portanto não potável”.
A professora também havia dito que os presos estavam sem lençóis e
sem colchão. “Dormem no chão ou em camas que na verdade são blocos de
concreto”. O documento relata essa situação, completando que alguns não
têm sequer roupas: “No momento da visita do MNPCT, a SEJUC [Secretaria
de Estado da Justiça e da Cidadania] não garantia itens básicos de
higiene nos Pavilhões 1, 2, 3 e Setor Médico, vários detentos não tinham
sequer colchões, roupas e chinelos. Cabia às famílias trazer esses
itens básicos e ainda, sabonete, xampu, material de limpeza.”
O documento também confirma o relato da professora de que há vários casos de doenças como hepatite, tuberculose, doenças de pele, sífilis e aids: “Foram identificadas 119 pessoas sofrendo de doenças infectocontagiosas: 67 pessoas tinham tuberculose, 32 sífilis, 12 com HIV/AIDS e oito tinham hepatite, segundo informações divulgadas pelo DEPEN. Todas estavam sem qualquer tratamento durante os anos anteriores, configurando um tratamento desumano e degradante, com possível piora de seus quadros clínicos”.
Peritos destacam indícios de abuso de força física:
Quanto ao abuso de força física por parte dos agentes, os peritos descrevem que “o nível de registro da unidade não garante a transparência sobre o que ocorre no seu interior”, mas que há indícios fortes de abuso de poder, com entrada do caveirão no complexo prisional. Durante as ações de vistoria geral, que algumas vezes contavam com a presença de caveirões (carros blindados da polícia) dentro do presídio, “os presos seriam encaminhados aos pátios nus ou de bermuda e permaneceriam sentados com as mãos entrelaçadas atrás da cabeça”.
Ainda segundo o relatório, são comuns relatos de violência e tortura “envolvendo agressões físicas, lesões por munição de borracha e agressões químicas – com espargidores (sprays) de pimenta”. Os peritos do mecanismo também registraram que os agentes penitenciários “portavam armamentos ostensivos, via de regra, escopetas calibre 12 e alguns fuzis de assalto, na contramão das diretrizes de uso da força internacionais”. Escopetas calibre 12 não devem ser utilizadas regularmente no dia a dia de uma penitenciária, devendo o seu porte ser excepcional e expressamente justificado.
Familiares passam por constrangimentos
No relato da professora Juliana, as “famílias são maltratadas” na hora da visita. O relatório também confirma essa informação, dando mais detalhes: "Outra rotina institucional violadora na unidade é a prática da revista vexatória nas pessoas visitantes com a utilização de agachamento em espelhos, toques e contração de órgãos genitais.”
Segundo os peritos, levantou preocupações o fato de “haver uma mesa obstétrica na sala das revistas”. O relatório afirma, no entanto, que a direção do presídio informou que o instrumento não é mais utilizado.
Documento cita música com apologia à tortura
Também conforme ÉPOCA já havia publicado, o documento do Mecanismo confirma que, em treinamentos de agentes penitenciários, é cantada uma paródia da música “Despacito” com letra que faz apologia à tortura. “A letra da música não só legitimava procedimentos de castigo coletivos, sem apuração disciplinar, com uso abusivo da força, mas também aludia a uma visão estereotipada de agentes penitenciários e presos, colocando-os em planos opostos e fomentando a ideologia do combate”, afirmam os peritos.
Segue um trecho da letra, destacado no relatório:
“Vou pronto para a intervenção
Tiro, gás, pimenta, extração
Tu não mexe comigo, sou operacional
A bala é de borracha mas tenho letal...
Preso é muito burro e gosta de correr perigo
Tirando minha paciência, fazendo tudo que é proibido…
Vou dar geral daquele jeito que você sabe
Vou ver quanto gás na cela cabe…
Tem agente malvadão…
Tá no sal comigo, suspende o parlatório e as visitas tudo”
Época
Leia mais: https://epoca.globo.com/peritos-confirmam-denuncias-de-tortura-em-presidio-de-alcacuz-no-rio-grande-do-norte-22942309#ixzz5N6yUVWmU
Após a publicação de seu relato, a antropóloga conta que foi perseguida e taxada de mentirosa. O secretário de Estado da Justiça e Cidadania do Rio Grande do Norte, Luís Mauro Araújo, foi a público negar as acusações da professora e chamá-la de "irresponsável". Cinco meses depois, o documento entregue nesta quarta comprova que ela estava falando a verdade. Segundo o documento, presos estão mantidos em condições que “configuram tratamento cruel, desumano e degradante”. “A tortura é prática enraizada e naturalizada no país, sobretudo quando dirigida contra corpos negros”, afirmam os membros do mecanismo, no texto de 166 páginas.
"Sempre falei a verdade. Eu sei disso e eles sabem disso. Esse relatório vem para confirmar. O que vejo aqui é uma tentativa de silenciamento", afirma a professora, após a divulgação do relatório. Desde a publicação de suas denúncias, ela relata estar impedida de entrar no presídio e conta que um juiz chegou a indicar-lhe que desistisse de tentar entrar lá para "não cair em uma pegadinha".
Os peritos do mecanismo denunciaram que, da mesma forma, órgãos de fiscalização externa não conseguiam autorização para entrar na unidade, nem mesmo o Conselho Estadual de Direitos Humanos, que possui prerrogativa legal de ingresso em todas as unidades do sistema prisional do estado. E que isso é um indício de violações: “Um local de privação de liberdade que não recebe nenhuma visita externa, vistoria e não tem procedimentos e rotinas estabelecidas de forma transparente é um ambiente em que pode haver tortura, crime que dificilmente será identificado ou responsabilizado”.
O relatório anual discorre sobre fiscalizações em presídios, unidades de internação de adolescentes infratores, hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas de quatro estados: Mato Grosso, Roraima, Rio Grande do Norte e Tocantins. O MNPCT ainda vai lançar mais um relatório com informações mais específicas sobre Alcaçuz, previsto para setembro.
Falta higiene e sobram doenças
Tal e qual Juliana Melo havia descrito, o relatório confirma que a água para higiene é ligada por meia hora, três vezes ao dia, e que o acesso a produtos de higiene pessoal está comprometido:“A higiene, sem quaisquer produtos, é ainda mais prejudicada diante das condições de racionamento de água, que é fornecida três vezes ao dia, em média por um período de 30 minutos a cada vez, totalizando 90 minutos de água por dia. Os detentos precisam fazer revezamento para utilizar a torneira de outras celas, bem como para utilização dos banheiros, o que é bastante prejudicado pelo racionamento, tornando o lugar ainda mais insalubre. (...) Trata-se de uma água não tratada para consumo humano, portanto não potável”.
O documento também confirma o relato da professora de que há vários casos de doenças como hepatite, tuberculose, doenças de pele, sífilis e aids: “Foram identificadas 119 pessoas sofrendo de doenças infectocontagiosas: 67 pessoas tinham tuberculose, 32 sífilis, 12 com HIV/AIDS e oito tinham hepatite, segundo informações divulgadas pelo DEPEN. Todas estavam sem qualquer tratamento durante os anos anteriores, configurando um tratamento desumano e degradante, com possível piora de seus quadros clínicos”.
Peritos destacam indícios de abuso de força física:
Quanto ao abuso de força física por parte dos agentes, os peritos descrevem que “o nível de registro da unidade não garante a transparência sobre o que ocorre no seu interior”, mas que há indícios fortes de abuso de poder, com entrada do caveirão no complexo prisional. Durante as ações de vistoria geral, que algumas vezes contavam com a presença de caveirões (carros blindados da polícia) dentro do presídio, “os presos seriam encaminhados aos pátios nus ou de bermuda e permaneceriam sentados com as mãos entrelaçadas atrás da cabeça”.
Ainda segundo o relatório, são comuns relatos de violência e tortura “envolvendo agressões físicas, lesões por munição de borracha e agressões químicas – com espargidores (sprays) de pimenta”. Os peritos do mecanismo também registraram que os agentes penitenciários “portavam armamentos ostensivos, via de regra, escopetas calibre 12 e alguns fuzis de assalto, na contramão das diretrizes de uso da força internacionais”. Escopetas calibre 12 não devem ser utilizadas regularmente no dia a dia de uma penitenciária, devendo o seu porte ser excepcional e expressamente justificado.
Familiares passam por constrangimentos
No relato da professora Juliana, as “famílias são maltratadas” na hora da visita. O relatório também confirma essa informação, dando mais detalhes: "Outra rotina institucional violadora na unidade é a prática da revista vexatória nas pessoas visitantes com a utilização de agachamento em espelhos, toques e contração de órgãos genitais.”
Segundo os peritos, levantou preocupações o fato de “haver uma mesa obstétrica na sala das revistas”. O relatório afirma, no entanto, que a direção do presídio informou que o instrumento não é mais utilizado.
Também conforme ÉPOCA já havia publicado, o documento do Mecanismo confirma que, em treinamentos de agentes penitenciários, é cantada uma paródia da música “Despacito” com letra que faz apologia à tortura. “A letra da música não só legitimava procedimentos de castigo coletivos, sem apuração disciplinar, com uso abusivo da força, mas também aludia a uma visão estereotipada de agentes penitenciários e presos, colocando-os em planos opostos e fomentando a ideologia do combate”, afirmam os peritos.
Segue um trecho da letra, destacado no relatório:
“Vou pronto para a intervenção
Tiro, gás, pimenta, extração
Tu não mexe comigo, sou operacional
A bala é de borracha mas tenho letal...
Preso é muito burro e gosta de correr perigo
Tirando minha paciência, fazendo tudo que é proibido…
Vou dar geral daquele jeito que você sabe
Vou ver quanto gás na cela cabe…
Tem agente malvadão…
Tá no sal comigo, suspende o parlatório e as visitas tudo”
Época
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